Polícia Federal
Caros Amigos 122 - Maio/2007 - Reportagem Especial sobre a Polícia Federal
Inteligência e sigilo
A Polícia Federal tem de compartilhar dados de inteligência para serem cruzados e produzirem mais informações, mas, ao mesmo tempo, tem de manter a investigação sob sigilo absoluto, mesmo que existam dados que possam interessa a outras agências. O limite é tênue. Para evitar o vazamento de informações, os policiais envolvidos numa operação são normalmente de fora do Estado onde ela ocorrerá. Aviões da própria Polícia Federal -- e às vezes da Força Aérea Brasileira -- trazem os agentes escalados dad demais capitais. Eles só ficam sabendo o que vão fazer minutos antes de se colocar em ação, geralmente durante a madrugada. Saber mais do que necessitam é colocar tudo em risco. Sem celular ou qualquer meio de comunicação, o policial chega num local onde ocorre um briefing, a reunião preparatória. Nesse momento, o chefe de cada equipe recebe um pequeno dossiê informando qual é a missão. Recebe a foto de quem deve ser preso, o endereço, o mapa e a lista do que deve apreender, como laptops, computadores, pendrives. O policial desconhece os outros alvos da operação. O nome que se dá a essa técnica é "compartimentação", com o uso inclusive de contra-informação, quando se criam histórias falsas, cada uma delas chamada de "história cobertura", para que policiais e demais pessoas envolvidas na ação nunca vazem nada sobre a operação. Quando ela é desencadeada, já há provas de culpa dos criminosos e elementos para pedir a instauração de inquérito na Justiça.
O meio mais comum de obtenção dessas provas é o grampo telefônico, autorizado pela Justiça. Para isso, a PF dispôe, no quinto andar do Máscara Negra, de sua Divisão de Inteligência. Lá está o "guardião", um sofisticado programa de computador que administra centenas de escutas telefônicas ao mesmo tempo, organiza as informações e é capaz de armazenar dados do Brasil inteiro. O sinal é redirecionado da central telefônica, mediante determinação judicial, e o computador passa a monitorá-lo.
"É o top de linha em relação a gravações da Polícia Federal. Você coloca um telefone no grampo e joga, por exemplo, a palavra bingo. Tudo o que vier sobre bingo, ele seleciona. Ele é inteligentíssimo", me contou um agente.
"É a coisa mais sagrada da Polícia Federal", me diria o delegado José Amaury de Rosis Portugal, presidente do Sindicato dos Delegados da Polícia Federal no Estado de São Paulo. "Com ele, você pega toda a rede criminosa. Porque não se faz mais nada sozinho. Quando a polícia pega alguma coisa, ela vai devagar, obtendo as provas, sem alarde nenhum. Quando tem tudo na mão, ela deflagra o processo. Posso dizer que o nosso serviço de informação é um dos mais perfeitos do mundo. Estão aí as provas para você ver".
Parafernália eletrônica
O principal fator em favor de um policial federal continua sendo a surpresa. Ele sabe o que vai acontecer graças ao monitoramento prévio dos envolvidos nos mais diversos esquemas criminosos -- do tráfico internacional de entorpecentes à lavagem de dinheiro, do tráfico de animais silvestres à grilagem de terras públicas. O cuidado dispensado à parte operacional, feito basicamente pelo pessoal de Brasília, chega a requintes inimagináveis, como, por exemplo, juntar todos os policiais disponíveis numa operação -- às vezes são centenas deles -- alguns minutos antes de ela começar. Por isso, ninguém chega de peito aberto numa ação. Até pouco tempo, os agentes só saiam às ruas para cumprir diligências. Na volta, repassavam os dados obtidos sem se preocupar se o crime investigado tinha relação com qualquer outro. Hoje, eles vão mais fundo, cruzando as informações com outras existentes nos serviços telemáticos.
A parafernália eletrônica é outro potencial de monitoração disponível. Pequeninos transmissores de escuta ambiental, microfones ultra-sensíveis que transmitem sem fio e equipamentos de localização via satélite são recursos capazes de monitorar qualquer cidadão a quilômetros de distância. Microcâmeras digitais, que cabem na palma da mão, servem de apoio quando se quer filmar discretamente à distância, mas uma singela caneta também pode se prestar ao mesmo papel. Receptores acoplados ao sistema de posicionamento global (GPS) podem vigiar o movimento de um automóvel em qualquer ponto da Terra. Espiões de computadores podem ser instalados num simples teclado. Não há nada impossível à arapongagem. "Com a tecnologia atual é praticamente impossível você não adentrar qualquer lugar. Ninguém mais tem privacidade em nada, porque tem equipamento que permite a invasão", diz um delegado que pede anonimato.
Outra técnica usada pela Polícia Federal é a chamada "exploração de local", forma em que um policial entra num prédio, por exemplo, sem levantar suspeita, e os vasculha para obter provas, em deixar vestígios. A ação é, na aparência, simples. Com autorização judicial, primeiro ele faz um reconhecimento do local, identificando os pontos frágeis. Depois estuda como fazer a abordagem. Com isso definido, ele entra dissimulado num ponto que está sob investigação, esquadrinha-o rigorosamente, podendo utilizar equipamento de escuta à distância a fim de monitorar um encontro futuro de pessoas acertando um negócio ilegal.
A tática, arriscada e ainda pouco utilizada, requer a reparação de homens disfarçados e bem treinados na maneira de tratar de detalhes, que vão da fabricação de chaves que lhe garantem o acesso ao local a ser vigiado, à desativação de alarmes, comuns nesse tipo de ambiente. Um exemplo dessa infiltração aconteceu durante a Operação Anaconda, que atuou contra uma quadrilha que agia em sete Estados e resultou na prisão de dois delegados da Polícia Federal, a esposa de um juiz federal e quatro empresários, por crimes de formação de quarilha, prevaricação, tráfico de influência, corrupção ativa e passiva, facilitação ao contrabando, lavagem de dinheiro e concussão, com especialidade em intermedias sentenças judiciais.
Treinamento nos EUA e Europa
Um seleto grupo, de algumas dezenas de homens, forma o COmando de Operações Especiais (COT), a elite da Polícia Federal. Foi criado em 1986 para substituir os órgãos vinculados às Forças Armadas de repressão aos crimes contra o Estado. Eles são treinados nos Estados Unidos, Inglaterra, França e Alemanha. Em setembro de 2005, um deles teve a missão de se infiltrar entre os próprios colegas para desbaratar uma quadrilha de policiais federais que agia no aeroporto de Guarulhos falsificando vistos e passaportes, enviando pessoas ilegalmente para o exterior e facilitando ou praticando o contrabando. O resultado dessa Operação Canaâ resultou na prisão de 44 pessoas, sendo dez servidores públicos e sete policiais federais. Em outra ação, um policial infiltrou-se entre os bandidos do Primeiro Comando da Capital (PCC), evitando um furto a dois bancos em Porto Alegre, que seriam roubados a partir da escavação de um túnel projetado para chegar às caixas-fortes. A operação, que prendeu 42 pessoas, ficou conhecida como Toupeira.
"Ainda não caiu a ficha do que está acontecendo no Brasil", diz um agente, sob promessa de anonimato. "Nossas investigações chegaram em níveis altos da estrutura do Estado, nos cargos mais elevados da República. Esse é um trabalho feito nos últimos quatro anos, com calma e tranquilidade. E o Brasil vai se dando conta de quanto a Polícia Federal mudou. Hoje ela possui estrutura e recursos. Se não dá pra agradar, que a gente incomode todo mundo. A Heloísa Helena reclamou da gente. O ACM também. O professor Luisinho, do PT, e o presidente da Câmara, Arlindo Chinaglia, idem. O equilíbrio está em atingir todo mundo, não passar a mão na cabeça de todos", diz, acrescentando: "A polícia cumpre de maneira equânime a legislação. A revista Caros Amigos tem interlocução com os setores mais progressistas e seria interessante que eles tivessem uma visão mais realista, mais próxima do momento histórico da polícia, e não uma visão antiga, ultrapassada, da polícia da ditadura".
"A primeira coisa que a Polícia Federal fez na atual gestão, para garantir credibilidade, foi uma limpeza por dentro", me conta outro agente. "Não se pode exigir isso de outros órgãos, quando não se limpa a proópria casa. E a polícia tem feito isso. Quando sua casa está limpa, ela se mantém por mais tempo arrumadinha. Mas tem de se um trabalho contínuo e permanente. Hoje não existe mais o policial que diz "me dei bem em tal operação". Se ele disser, estará isolado e seu nome vai para o corregedor no dia seguinte. Porque isso choca, mancha e envergonha a gente: laranja podre tem de sair para não contagiar os demais".
A perícia da perícia
O edifício do Instituo Nacional de Criminalística, de 20.000 metros quadrados, inaugurado em março de 2005, é um dos maiores do mundo no gênero e possui um sistema de vigilância com câmara de vídeo, e o acesso ao seu complexo de laboratórios especializados nas diversas áeras periciais é protegido por senhas.
Quem me recebe é o perito criminal José Gomes da Silva, há onze anos no cargo, uma "testemunha ocular" no reaparelhamento da Polícia Federal. Ele explica que sua função é a de processsar os vestígios relacionados a um crime, o que resultará num laudo pericial, dando suporte ao processo de investigação criminal e às denúncias do Ministério Público. "Aqui", diz ele, ao me apresentar a um laboratório de genética forense equipado com tecnologia de análise de DNA, "os criminosos são identificados por apenas um fio de cabelo, manchas de sangue, restos de sêmen e outros pequenos vestígios deixados no local do crime".
Gomes vai abrindo as senhas e me levando a diferentes laboratórios, dotados de computadores, microscópios eletrônicos, aparelhos de detecção de resíduos, cromatógrafos, estufas, centrífugas, equipamentos audiovisuais, de varredura eletrônica, cibernéticos e um moderno aparelho, o VSC 5000, que trabalha com lentes de ampliação e fontes de luz para analisar a autenticidade de quaisquer materiais, de documentos a moedas.
O laboratório de química legal, repleto de ampolas contendo materiais reagentes, é responsável pelas análises de medicamentos, bebidas, tintas, cosméticos, combustíveis e explosivos, além da identificação de diferentes drogas, nas diversas formas, teores e graus de pureza. Ele pode ainda apontar quais foram as substâncias utilizadas na fabricação e no refino da droga, facilitando os procedimentos de investigação policial ao indicar a região de produção.
Alguns minutos mais e estou numa sala isolada acusticamente e dotada de exaustores que eliminam gases propelentes. Trata-se do Serviço de Perícias do Laboratório e de Balística, projetado para identificar armas e revelar os caracteres (números e letras) de registro que foram adulterados ou suprimidos. Os peritos realizam exames completos em armas e munições, dispondo de um campo de provas de ensaios balísticos, espaço seguro para simulação de trajetória de projéteis e estimativa de distância de tiro.
Quando chegamos ao Serviço de Documentoscopia, Goms me pede para escrever algo no meu caderno de anotações sem que ele veja. Escrevo, destaco a folha e ele apanha o bloco com as folhas em branco subsequentes. Em seguida, coloca-o num aparelho e -- abacadabra! -- a palavra que eu havia escrito é revelada pela máquina na folha em branco, e poderá ser lida até a sexta delas. Cabe a esse tipo de perícia determinar os métodos e processos usados em falsificação de documentos, bem como realizar exames em qualquer material gráfico manuscrito ou impresso, como papel-moeda, nota fiscal ou carteira de identidade. Foi nesse laboratório que Severino Cavalcanti, deputado cassado por receber 20.000 reais para renovar a concessão de um restaurante da Câmara, dançou.
O setor de perícias contábeis e econômicas examina a movimentação bancária, balanços patrimoniais e declarações de imposto de renda, evasão de divisas, corrupção, fraudes contábeis e desvio de verbas públicas. O de informática busca solucionar crimes cibernéticos, por meio de quebra de senhas, recuperação de dados apagados, rastreamento de mensagens eletrônicas e sítios ilegais.
Crime contra a flora e a fauna, perícia em pedras preciosas, geoprocessamento com utilização de satélites, cartografia digital e localização GPS (Global Positioning System), grupo de atuação em bombas e explosivos -- além da realização de exames em locais de arrombamento, morte violenta, incêndio -- são outras áreas de atuação do Instituto Nacional de Criminalística. O diabo é que o Brasil só tem 750 peritos criminais federais, 124 dos quais trabalhando em Brasília. Precisaria no mínimo o triplo.
João de Barros é Jornalista. Email: joaodebarros arroba carosamigos.com.br